11.9.06

Crónicas de uma paixão...e demais histórias associadas.

Confesso que tenho alguma dificuldade em lembrar-me da minha primeira vez. Não porque tenha corrido especialmente mal ou já agora especialmente bem, mas sim porque foi há muito tempo. Foi numa altura em que os bigodes, daqueles farfalhudos sempre com restos de sopa a morar nos cantos, ainda estavam na moda, em que o Carlos Cruz era só o apresentador do 1,2,3 com a sua inesquecível bota botilde, em que ainda havia escudos e em que tínhamos de vencer filas de carros à espera dos controlos fronteiriços quando íamos comprar caramelos a Espanha,daqueles que se colavam de forma malina ao dentes e ao céu da boca.
Julgo que tudo começou em S. Pedro de Moel, rodeado por pais e tios e primos e avós, mas confesso que àparte um incidente que envolveu a minha avó, as minhas partes pudendas e uma panela de sopa a ferver, tudo o resto está envolto em névoa. Mais tarde recordo umas curtas idas a Esmoriz, com o seu belo ringue de futebol e a sua mosquitada mal intencionada, mas fora estes dois casos não tenho memórias muito vivas do início do meu percurso como campista.
Salto, assim sendo, para os meus 16 anos e para a 1ª experiência de férias só com amigos. O local escolhido, porque terá sido?, foi a então pacata vila alentejana da Zambujeira do Mar, à qual só chegávamos depois de uma aparentemente interminável viagem de autocarro Porto-Lisboa-Zambujeira. A bela da camioneta despejáva-nos na praça central e lá zarpávamos nós, estranha e desorganizada caravana de camelos carregados como mulas a arrastar, na marra e na garra próprias da inconsciência e inconstância da tenra idade, malas, tendas e até almofadas (??), nessa curta rota de 1,5 Km de alcatrão que nos separava do el-dorado, que nesta história tomava a forma de um bastante reles parque de campismo. Como se alguém se tivesse sentado um dia à sua secretária e querido acrescentar drama a esta película de série B ou talvez testar de alguma forma as teorias darwinianas, diga-se ainda que a camioneta chegava às 21h45m e a recepção do camping fechava às 22h. Depois da correria, e conseguida a tão almejada admissão no parque, as tendas eram montadas no meio do breu, com pedras a servir de martelos, mas nunca sem que antes nos envolvéssemos na eterna discussão o sol põe-se além logo nasce acolá consequente para ter sombra este local é bom e aquele é mau vê-se logo que tu não percebes bolha desta merda. Invariavelmente tínhamos logo no dia seguinte o duvidoso privilégio de constatar que de facto os adolescentes acneicos percebem muito pouco de pontos cardeais e órbitas solares. Sem colchões de jeito, as noites eram passadas a experimentar cuidada e demoradamente todas as irregularidades e calhaus do solo alentejano. Dessa 1ª experiência guardo a rotina das rondas nocturnas pelos bares da vila e da obrigatória passagem final pelo Clube da Praia. Alcoolizados mas quase sempre felizes, voltávamos às tantas para o parque mas antes do descanso dos guerreiros havia ainda tempo e vontade para jogar umas memoráveis cartadas, quase sempre King, sentados nas estradas do parque sob as ténues mas fiéis luzes de lampiões tristes e sós. Para lá do normal correr atrás de rabos de saias, em que uns privilegiavam a fauna local e outros atacavam as estranjas, à lá Camarinha destemido, (diga-se a talho de foice que a maior parte das caçadas acabava com a fuga inglória da presa), o que mais recordo é a fome que passávamos. Mais dados à bola e demais actividades testosterónicas, praticamente nenhum de nós tinha aproveitado a vontade de ensinar culinária básica à prole que anima todas as mães. Assim sendo, a ementa diária ia de sandes de atum àquelas refeições pré-cozinhadas (por mais que viva não mais esquecerei o esforço sobre-humano que foi engolir o conteúdo de uma latinha de dobrada fria), porque o dinheiro era pouco, à justa para pagar viagens, parque e bebidas. Não posso assegurar em que dia foi, 3º?, 4º?, mas uma tarde em que estávamos estendidos na praia, meio ressacados e literalmente com o estômago colado às costas, o JB e eu decidimos subir aquela longa escadaria, ir à primeira esplanada, mandar a lógica económica às urtigas e investir tudo numa refeição. Sentámo-nos, escolhemos, e preparávamo-nos para fazer a via sacra da espera pela comida, quando o tipo que estava duas mesas ao lado se levantou e foi embora, deixando bem no centro da mesa metade de uma dose de batatas fritas. Mudos mas atentos, tivemos os dois o mesmo instinto, animal, primário, tão velho quanto o Homem, e quando o rapaz passou por nós com o intuito de levar os restos da dose de batatas para dentro, a fome venceu facilmente a vergonha e os pruridos higiénicos. Fosse pelo invulgar da situação ou simplesmente por ter percebido o nosso desespero, a verdade é que ele se limitou a esboçar um largo sorriso e sem dizer nada lá pousou os restos meio comidos daquelas maravilhosas french fries, um manjar como poucos tive desde então.
Lembro-me ainda do meu espanto inicial sempre que alguém com quem entabulava uma conversa me dizia logo ah mas tu és do Porto. De vez em quando, como é próprio destas idades, os bacocos orgulhos regionais vinham ao de cima e lá nos envolvíamos em disputas verbais com malta de Lisboa, que acabavam com um desafinado coro de vozes a cantar ao desafio o Cheira bem, cheira a Lisboa e o Porto Sentido. Para os anais da história ficou também um célebre jantar no Casino da Ursa, julgo que já no 2º ano de acampamentos, passado a ver uma final da supertaça Porto-Benfica. Mesmo com a casa cheia e a deitar por fora, a nossa mesa era a única de portistas, e à medida que o dramatismo do jogo ia subindo as picardias aumentavam de tom, em paralelo com o correr das canecas de vinhaça da casa. Depois de um empate, a 2?, chegou-se aos penalties. Tendo começado a perder, o Pinto da Costa agarrou-se ao crucifixo e à imagem da Santa, ajoelhou-se na relva e por entre rezas de uns e lágrimas de outros lá acabámos por dar a volta à coisa e ganhar o caneco (a algazarra que se seguiu foi de tal ordem que fomos expulsos por um proprietário, com evidente dor de cotovelo).continua...

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